que tem um medo danado de estragar as coisas.
Desde muito pequena. Desde sempre.
Ofereciam-me um qualquer brinquedo e eu demorava dias e dias antes de começar a brincar, de facto, com ele. Passava esses dias e dias, primeiro a olhar para ele. Depois, a abrir a caixa com todo o cuidado. Finalmente, a manuseá-lo com alguma apreensão. Sempre com aquele receio de o estragar. Sempre com aquele medo de fazer com que ele deixasse de ser tão bonito, sem defeitos. Tão 'perfeito'. Por vezes, passavam-se meses, antes de eu me aventurar na descoberta. Muitas vezes, o brinquedo já tinha deixado de ter qualquer tipo de interesse para uma criança da minha idade quando, efectivamente, perdia o receio de brincar com ele. Acabava, assim, por não o aproveitar no momento certo.
Com o passar dos anos, deixaram de me dar brinquedos. Passou a ser com outra prenda qualquer. Não é necessário que seja algo muito valioso. É que se fosse, até se poderia entender esta minha mania. Mas não. Basta ser algo que me tenha sido oferecido. Basta que seja algo que passe a ser meu. Por exemplo, sempre demorei dias antes de tirar aquela película transparente do vidro dos relógios ou do ecrã dos telemóveis. Sim, é verdade, também me oferecem relógios e telemóveis. Aliás, para ser mais exacta, nunca comprei nenhum. Nem de um, nem de outro.
Essa dificuldade em aproveitar em pleno o que me é oferecido continua até hoje. Por acaso, tenho um exemplo bem recente. No dia dos meus anos, recebi uma máquina fotográfica toda XPTO. Pelo menos, para mim, assim o é. Já que a minha outra máquina é velhinha velhinha e é do mais básico que possa haver (também ela oferecida). Pois bem, recebi a máquina há mais de três semanas e ainda nem sequer retirei a tampa que tapa a objectiva. Quando a recebi, abri a caixa, com todo o cuidado do mundo. E peguei nela, com algum receio, enquanto agradecia a oferta. Mas, segundos depois, voltei a colocá-la, delicadamente, na sua caixa. Li o manual, assim na diagonal. Até porque não percebo patavina daquilo que lá vem escrito. Mas nada de mexer na máquina. Nada.
A pessoa, que me ofereceu a dita máquina, está farta de perguntar se já peguei nela, se já me entendo com ela, se já tirei muitas fotos fixes com ela. E, eu, limito-me a responder que não. Não, a todas as perguntas. A pessoa acha estranho. E eu dou a desculpa de que veio sem cartão de memória. Mas pode-se usar/manusear a máquina, mesmo sem cartão, para nos podermos familiarizar com ela, dizem as pessoas. Está bem, mas prefiro ter tudo em ordem antes de me aventurar, respondo eu.
Andei a adiar a compra do raio do cartão. Anteontem, levaram-me até à Worten, para eu o poder comprar. Está aqui. Mesmo à minha beira, o cartão de memória, ainda na sua embalagem. Intacta. Ao lado, está a caixa com a máquina fotográfica. Intacta.
Hoje de manhã, olhando para o cartão de memória na sua embalagem intacta e para a máquina fotográfica na sua caixa também ela intacta que estão aqui na mesa, à beira do computador, pus-me a pensar. Lembrei-me desta minha mania parva. E pus-me a pensar nas pessoas. Nas pessoas que passaram pela minha vida. Naquelas que já não fazem parte dela. Naquelas que, de uma maneira ou de outra, ainda nela permanecem. Naquelas que chegaram há pouco e que, parece-me, estão prestes a dar de frosques. Pensei nessas pessoas todas. Numas mais. Noutras menos. Pensei mais nas últimas. Numa das últimas em particular, sem dúvida. Percebi que, talvez, sem dar por ela, sempre tive essa mania parva não só com objectos que me eram oferecidos, mas também com pessoas que a vida me vai oferecendo.
Percebi que, talvez, nunca deixe de ter essa mania com objectos. Agora, de uma coisa tenho eu a certeza. Não a quero ter mais com certas pessoas que a vida me 'ofereceu'. Com as últimas pessoas. Com uma dessas pessoas em particular. sim, és tu. parvo-convencido-susceptível-e-casmurro(nos dois sentidos da palavra)-como-o-raio.