sábado, 16 de junho de 2012

Tudo por Portugal - mais do que uma religião


Ainda nem se falava do Europeu nas televisões e jornais deste país e Ele já tinha comprado o seu Guia do Europeu com 292 páginas. Ainda não se via nenhuma bandeira, orgulhosamente esticada, à janela, mas Ele já lia, horas a fio, e em voz alta (porque guardo melhor as informações lendo desta forma, confessou-me Ele), aquela que será a sua bíblia até ao dia 1 de Julho.
O Europeu foi-se aproximando e Ele foi riscando, com todo o cuidado do mundo (só lhe faltava mesmo a língua de fora, como os putos quando fazem algo trabalhoso), fotografias e nomes de alguns jogadores que apareciam a cada página. Estes, afinal, não foram convocados, explicava Ele, ao ver a minha cara de espanto porque leiga no assunto.




O Europeu começou e Ele não perde um único jogo, sempre com a bíblia à sua beira, aberta na página certa, e uma caneta para poder apontar, no final, o resultado de cada equipa. Deposita todo o seu carinho naquele pequeno gesto que é escrever um número num quadradinho, como se de o mais importante apontamento da sua vida se tratasse. Não perde um único jogo e não é simples. Ele trabalha e, não raras vezes, chega a casa depois das 19h30'. Antes do acontecimento do ano chegar, foram várias as vezes que resmungou: Isso são lá horas de marcar os jogos? Devem pensar que toda a gente tem a boa vida deles, com certeza. Mas, rapidamente, encontrou a solução adequada ao seu problema e não mais resmungou. Todos os dias, sai do trabalho à pressa. Não houve rádio, como era o seu costume, no caminho até casa. Em qualquer momento podem dizer o resultado do jogo das 5, salienta Ele. Ao entrar no prédio, reza para não encontrar algum vizinho. Pode meter conversa e entre o "boa tarde" e o "até amanhã" descair-se com o resultado do jogo das 5, teme. Sobe as escadas a correr. Aí, já o consigo ouvir perfeitamente. E sorrio. Sorrio porque, como lhe pedi, deixou de usar o elevador e faz, assim, um pouco de exercício. Abre a porta num sorriso que só ele tem e, com olhos brilhantes diz: Espero ainda vir a tempo de ouvir os hinos. E, todo satisfeito, com o seu Tudo por Portugal aberto, vê o jogo com entusiasmo. Com entusiasmo mas sem som. Durante o jogo, os comentadores podem relembrar o resultado do jogo das 5, aponta. Quando vê os jogos no computador, lá apanha um site russo, ou o da Al Jazira e, aí, o som é bem vindo. Não o incomoda. Depois, quando toda a gente já está careca de saber o resultado do jogo das 5, Ele vai aos programas gravados e carrega no play. Não perde um jogo, portanto, e é feliz assim. Lá vai registando, religiosamente, o resultado de cada jogo, na página que lhe é destinada com o mesmo cuidado e dedicação e é feliz assim.
Desde o Euro 96 que compra e guarda carinhosamente a revista correspondente. Quando tiver filhos, vão gostar de rever comigo, declara Ele, cheio de orgulho. Este ano, ficou um pouco desiludido. Em anos anteriores, a bíblia tinha umas páginas específicas para assinalar os onze titulares, os marcadores, a disciplina (cartões) e as substituições de cada jogo. Era uma bíblia mais completa. Mas o que importa mesmo é a intenção. E os jogos. E os resultados de cada equipa que joga ou poderá vir a jogar com Portugal. O que importa é Portugal. É ficar à espera de ver até onde poderá chegar. Isso é que importa. E, para isso, vamos  ter de continuar a acreditar, vibrar, sofrer, ter esperança. Esperar.

4 comentários:

  1. Gostei muito do texto.
    Mas há desde o princípio de fundo: Ele NÃO pode nunca ignorar o resultado do jogo das 5. Porque Deus tudo sabe. Ou não? :)

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    1. Quase rejubilei, Vic, ao ler que tinhas gostado (e muito) do texto. Rapidamente esfriei, mal li o resto do comentário... ;)

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  2. Ah! Esquecia-me de um pormenor: não sabia que Deus é português. No Brasil, dizem que é brasileiro :)

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    1. Tudo é possível no mundo ficcional construído pelo escritor, também designado, e bem, de criador ;p

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